quarta-feira, setembro 13, 2006

Contos de Andersen

Quem não se recorda dos Contos de Andersen na RTP, durante a semana ao final da tarde? Daqueles contos tão tristes, tão tristes que nos faziam chorar copiosamente (pelo menos eu chorava)? Pois hoje lembrei-me de um deles, um dos que mais me marcou: A menina dos fósforos.

"Era véspera de Ano Novo. Fazia um frio intenso; já escurecia e caía neve. Mas a despeito de todo o frio, e da neve, e da noite, que caía rapidamente, uma criança, uma menina, descalça e de cabeça descoberta, vagava pelas ruas. É certo que estava calçada quando saíu de casa; mas os sapatos eram muito grandes, pois que a mãe os usara, e escaparam-lhe dos pezinhos gelados, quando atravessava uma rua a correr, para fugir de dois carros que vinham a toda a velocidade. Não encontrou um dos chinelos e o outro apanhou-o um rapazinho, que saiu disparado e a dizer que aquilo iria servir de berço aos seus filhos, quando os tivesse. Continuou, pois, a menina a andar, agora com os pés nús e gelados. Levava no avental velhinho uma porção de caixas de fósforos e tinha uma delas na mão: não conseguira vender uma só em todo o dia, e ninguém lhe dera esmola - nem um só vintém.

Assim, morta de fome e frio, ía arrastando-se penosamente, vencida pelo cansaço e o desânimo - a estátua viva da miséria.

Os flocos de neve caíam pesados, sobre os lindos cachos louros que lhe emolduravam graciosamente o rosto; mas a menina nem dava por isso. Via, pelas janelas das casas, as luzes que brilhavam lá dentro; vagava na rua um cheiro bom de pato assado - era a véspera do Ano Novo - isso sim, não o esquecia ela.

Achou um canto, formado pela saliência de uma casa, e acocorou-se ali, com os pés encolhidos para abrigá-los ao calor do corpo; mas cada vez sentia mais frio. Não se animava a voltar para casa, porque não tinha vendido uma única caixinha de fósforos, e não ganhara um vintém; era certo que levaria algumas lambadas. Além disso, lá fazia tanto frio como na rua, pois só havia o abrigo do telhado, e por ele entrava o vento, a uivar, apesar dos trapos e das palhas que lhe tinham vedado as enormes frestas.

Tinha as mãozinhas tão geladas... estavam duras de frio. Quem sabe se acendendo um daqueles fósforos pequeninos, sentiria algum calor? Se se animasse a tirar um ao menos da caixinha, e riscá-lo na parece para acendê-lo... Ritch!... Como estalou, e faiscou, antes de pegar fogo!
Deu uma chama quente, bem clara, e parecia mesmo uma vela, quando ela o abrigou com a mão. E era uma vela esquisita, aquela! Pareceu-lhe logo que estava sentada diante de uma grande estufa, de pés e maçanetas de bronze polido. Ardia nela um fogo magnífico, que espalhava suave calor. E a meninazinha ía estendendo os pés enregelados para aquecê-los e... crac! Apagou-se o clarão! Sumiu-se a estufa, tão quentinha, e ali ficou ela, no seu canto gelado, com um fósforo apagado na mão. Só via agora a parede escura e fria.

Riscou outro. Onde batia a sua luz, a parede tornava-se transparente como a gaze, e ela via tudo lá dentro da sala. Estava posta a mesa, e sobre a toalha alvíssima via-se, fumegando entre toda aquela porcelana tão fina, um belo pato assado, recheado de maçãs e ameixas. Mas o melhor de tudo foi que o pato saltou do prato e, com a faca ainda cravada nas costas, foi pelo soalho direito à menina que estava com tanta fome, e...

Mas - que foi aquilo? No mesmo instante acabou-se o fósforo, e ela tornou a ver somente a parede nua e fria, na noite escura. Riscou outro fósforo, e àquela luz resplandecente, viu-se sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Oh! Era muito maior, e mais ricamente decorada do que aquela que vira, naquele Natal, ao espreitar pela porta de vidro da casa do negociador rico. Entre os galhos brilhavam milhares de velinhas; e estampas coloridas, como as que via nas vitrinas das lojas, olhavam para ela. A criança estendeu os braços, diante de tantos esplendores, e então, então... apagou-se o fósforo. Todas as luzinhas de natal foram subindo, subindo, mais alto, cada vez mais alto, e de repente ela viu que eram estrelas, que cintilavam no céu. Mas uma caiu lá de cima, deixando uma esteira de poeira luminosa no caminho.

- Morreu alguém - disse a criança.

Porque sua avó, a única pessoa que a amara no mundo, e que estava morta, lhe dizia sempre que quando uma estrela desce, é que uma alma subiu para o céu.
Agora ela acedeu outro fósforo; e desta vez foi a avó que lhe apareceu, a sua boa avó, sorridente e luminosa, no esplendor da luz.
- Avó! - gritou a pobre menina - Leva-me contigo... Já sei que quando o fósforo se apagar, tu vais desaparecer, como se sumiram a estufa quente, e o rico pato assado, e a linda árvore de Natal!
E a coitadinha pôs-se a riscar na parede todos os fósforos da caixa, para que a avó não se desvanecesse. E eles ardiam com tamanho brilho, que parecia dia, e nunca ela vira a vovó tão alta, nem tão bela! E ela tomou a neta nos braços, e voaram ambas, num halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe... longe da terra, para um lugar lá em cima onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo, porque elas estavam agora com Deus.

A luz fria da madrugada achou a menina sentada no canto, entre as casas, com as faces coradas e um sorriso de beatitude. Morta. Morta de frio, na última noite do ano velho.
A luz do Ano Novo iluminou o pequenino corpo, ainda sentado no canto, com a mão cheia de fósforos queimados.
- Sem dúvida ela quis aquecer-se - diziam.
Mas... ninguém soube das lindas visões, que visões maravilhosas lhe povoaram os últimos momentos, nem em que halo tinha entrado com a avó nas glórias do Ano Novo."

Bolas, ainda me causam o mesmo efeito.

6 comentários:

Mónica Lice disse...

Que curioso! Esta é também uma das histórias que mais me marcou, e da qual me lembro perfeitamente!:)

Mipo disse...

Credo! Do que me foste lembrar! Que tristeza!...

E não viste o episódio do passarinho, que se matou num espinho de rosa, para tingir uma rosa de vermelho? Rosa essa que era para um menino dar à menina por quem estava apaixonado? Menina essa que, depois de dizer que só o queria quando o visse com uma rosa vermelha, o rejeitou quando ele apareceu com ela? Aquilo é que foi drama!... O que eu chorei! E mais com o pássaro morto...

Camélia disse...

Ai menina, nem me lembres dessa! São as que mais recordo: a menina dos fósforos, a do passarinho e aquela da mãe que procurava a filha e uma feiticeira tirou-lhe a beleza, depois a visão, a seguir o tacto...oh meu Deus aquilo tinha tanto de fascinante como de deprimente :S

Mipo disse...

e o barba azul? Lembras-te do barba azul? Com 1 sala fechada à chave cheia de mulheres mortas? Mas quem é que se lembrou de meter aquilo num livro de contos para crianças?!??!

Camélia disse...

Isso faz-me pensar que as crianças da altura, são os adultos de agora, ou seja, "NOZES"!!! Medo!

Alex disse...

Aiii nem leio a história.. Eu chorava baba e ranho! Ficava até ao fim na esperança desesperante de que a história conseguisse acabar bem e nada! A que mais me marcou foi a história da andorinha e a estátua... Meu deus. Traumatizou-me. Também a Rainha das Neves.

LOL para os comentários anteriores... E queixamo-nos nós da violencia gratuita dos bonecos de agora. Se calhar naquela altura era violência bem mais requintada!

E não vou falar no Marco!

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